quinta-feira, 7 de março de 2013

Tuneis, igrejas e catacumbas revelam o lado macabro da Itália

A cripta dos Capuchinhos, em Roma: ossos de quatro mil monges RUTH FREMSON / NEW YORK TIMES ROMA - Quem visita a Itália tende a procurar seu lado ensolarado e dionisíaco — vinho, massa, ópera, arte renascentista, George Clooney numa Vespa (o ator comprou uma mansão do século XVIII em Laglio, ao norte). Mas, como uma brisa fresca num dia de calor, o ângulo gótico da Itália oferece nuances de penumbra que fazem de um momento numa piazza ainda mais delicioso. Conscientemente ou não, alguém bebericando prosecco no pôr do sol em Roma ou Nápoles saboreia uma colher extra de "doçura" em sua "vida" graças ao contraste entre a beleza do presente e a proximidade com catacumbas, ruínas e antigos locais de sofrimento. Os escritores góticos foram muito inspirados por essa ambiguidade. Edgar Allan Poe, Nathaniel Hawthorne, Horace Walpole, Ann Radcliffe e outros mestres do romantismo e do horror basearam algumas de suas obras mais famosas na Itália. "A Itália foi cenário favorito dos escritores góticos", escreveu Massimiliano Demata, professor da Universidade de Bari, que pesquisou o assunto. Portas barrocas, castelos em ruínas, estranhos relicários e catacumbas serviram como portões de entradas para a misteriosa e, como ele classificou, "labiríntica e claustrofóbica arquitetura que era o perfeito cenário físico e psicológico dos romances". Hoje, esses livros são guias nada convencionais para turistas cansados do sol que querem explorar o passado macabro do país. Para os escritores góticos, locações diversas despertaram diferentes aspectos da imaginação. Veneza tinha o apelo especial para os que exploravam o terror psicológico pré-freudiano ("The assignation," de Poe, se passa perto da Ponte dos Suspiros). Pádua, cidade universitária a 30 quilômetros de Veneza, foi base para um assustador conto de Hawthorne, "Rappaccini’s daughter", sobre um cientista louco que realiza experiências com plantas venenosas e transforma os lábios de sua bela filha em beijos literalmente mortais. VEJA TAMBÉM GALERIA Itália gótica: roteiro por Nápoles e Roma Roteiro pela Sicília leva a locações usadas em 'O poderoso chefão' e ao topo do vulcão Etna Um verão com sabor de pesto em Gênova Caveiras coroadas e monges conspiradores em Nápoles A pouco conhecida mestre gótica, Ann Radcliffe, foi uma inglesa solitária que, como Horace Walpole, foi celebrada em sua época por suas novelas, muitas das quais baseadas na Itália, visivelmente colocando forças malignas sobrenaturais, às vezes associadas ao catolicismo ou a pequenos tiranos feudais, contra jovens ingênuas e seus corajosos e frustrados amantes. A história de "O italiano" começa com um inglês avaliando a igreja de Santa Maria del Pianto, em Nápoles, que Radcliffe descreve como "o convento muito antigo da ordem dos Penitentes Negros". Visitantes contemporâneos podem confrontar a imaginação gótica de Radcliffe com a viva realidade dessa fervilhante cidade. A igreja de Santa Maria del Pianto continua ali, mas não consta nos guias turísticos. Quando perguntei por ela, uma mulher numa banca de jornal no centro da cidade me apontou vagamente numa direção (errada), e me mandou para uma gigantesca galeria do século XIX com o telhado de vitrais delicados e piso de mármore surrado. Em seguida, minha jornada me levou às cheias e estreitas ruas de trás, com varandas decoradas com roupas secando, e finalmente, à soleira da Hosteria Toledo, onde os proprietários preparavam um almoço de domingo à tarde com frutti di mare fritos e uma massa com tomate e manjericão. O cunhado do proprietário, um guia de turismo, recorreu ao telefone para assegurar-me de que a igreja do livro de Radcliffe não era definitivamente "uma das maiores igrejas de Nápoles". Ela ainda existe, mas num subúrbio chamado de Secondigliano, agora infestado pelo crime organizado. Risquei da minha lista, relutante. Outros pontos napolitanos de Radcliffe merecem uma visita, apenas porque a busca por eles permite vagar pelas ruas, notando muitos outros encantos góticos de Nápoles. Os amantes do livro, Vivaldi e Ellena, puseram os olhos um no outro pela primeira vez na igreja de San Lorenzo Maggiore, que continua de pé no centro histórico de Nápoles. Do outro lado da movimentada travessa medieval está uma igreja muito assustadora, decorada com caveiras, construída no século XVII por um culto chamado de Almas do Purgatório, que adotava os ossos dos mortos para rezar e resgatar suas almas do esquecimento eterno. No alto da Igreja de Santa Maria delle Anime del Purgatorio está um verdadeiro crânio coroado chamado "Lucia" e uma escultura de uma caveira alada, que é uma obra-prima. Esse marco macabro fica em frente a um mercado de legumes frescos digno de uma capa de revista de gastronomia, decorado com cordas de alho, pimentas e tomates secos. Atrás dele, um enorme bazar a céu aberto dedicado a criar e vender os fálicos amuletos da sorte de Nápoles, que parecem pequenos chifres vermelhos, os pulcicorni. Na porta ao lado está a sempre amontoada Pizzeria Sorbillo, que serve lendárias pizzas napolitanas. A maior parte da ação em "O italiano" acontece nas ruínas do castelo e do monastério nas colinas acima da cidade, onde nossos herói e heroína são sequestrados, trancados em quartos escuros e mandados para o sádico tribunal da Inquisição. O Castel San’Elmo ainda paira sobre Nápoles, um gigante de estrutura medieval, cuja lateral fica sobre um penhasco, cheio de frestas para arqueiros e escavado por passagens escuras com masmorras. A vista de San Elmo para Nápoles, com seus telhados ocre, domos de igreja e o mar, é espetacular. Poucas centenas de metros colina abaixo está o monastério de San Martino, uma suntuosa construção, cheia de tesouros, antigamente habitada por um pequeno grupo de monges que foram expulsos por Napoleão em 1804 e proibidos com a unificação da Itália, em 1860. Os jardins isolados do monastério, com fragrâncias das laranjeiras, ciprestes e parreiras, poderiam ter sido o pano de fundo para as lutas do herói com o monge conspirador. Tanto o castelo quanto o mosteiro são acessíveis através de um funicular que desce para o centro histórico, que tem lojas e fantásticos restaurantes e bares lado a lado à estranheza medieval. Não perca o pequeno Museo Capella Sansevero, com dois esqueletos anônimos cujos sistemas circulatórios, dizem, foram misteriosamente mumificados por um louco alquimista, e que parecem modernistas esculturas com arame de figuras humanas. A clássica e confidencial coleção Farnese de mármores romanos no Museu Arqueológico Nacional de Nápoles também vale a visita. Alguns novos quiosques podem até ajudar providenciando um mapa da "Nápoles misteriosa" que inclui lugares mal-assombrados até para além da imaginação gótica inglesa. Todos os caminhos levam para debaixo do solo romano Viajando de Nápoles para Roma, alguém com tendências góticas pode querer passar as duas horas no trem lendo uma pequena novela de uma obscura escritora vitoriana, Anne Crawford, autora da primeira história de vampiros em inglês. As vistas pastorais foram retratadas em incontáveis pinturas e fotos que celebram a clássica beleza italiana, mas esculpido nas rochas sob os campos está um labirinto de catacumbas que já guardaram os restos mortais de milhões de pagãos e cristãos. Crawford baseou "Um mistério na Campagna", publicado em 1887, numa dessas tumbas. Sua vampira, que antecedeu o Drácula de Bram Stoker em dez anos, é chamada de Vespertilia, uma sedutora alta e esbelta, vestida de "algo longo e escuro" nos quais "um par de mãos brancas brilhava", diz o narrador, um francês que perdeu um amigo para seus encantos. Ela dorme nas catacumbas durante o dia e, à noite, leva enrabichados cavalheiros do norte da Europa, em inocentes férias, escada abaixo, onde "a escuridão parecia levantar e engoli-los". As catacumbas de Roma são hoje um ponto turístico popular, cercadas e supervisionadas por padres que levam grupos de turistas para baixo pelos degraus de pedra amarelados, pela escuridão, e, em meia dúzia de idiomas, falam sore o cemitério dos primeiros cristãos. Nosso guia, um padre australiano com uma camisa preta e colarinho branco, não quis entrar na discussão sobre o que aconteceu nas catacumbas durante os mil anos entre o encerramento oficial do cemitério cristão e a reabertura do sítio, no século XIX. Ele tinha ainda menos interesse em especulações sobre vampiros. — Este é um lugar sagrado — ele lembrou ao pequeno grupo, que incluía um trio de australianos asmáticos que não conseguiam parar de tossir no ambiente mofado e úmido. Nós o seguimos por estreitos corredores de pedra, passando por prateleiras retangulares que um dia guardaram esqueletos. Tentei ficar no meio. Aparentemente havia sombra suficiente nas catacumbas para esconder uma ou duas assombrações esperando para agarrar um retardatário com seu abraço gelado. Depois do tour de uma hora pelas prateleiras dos mortos, visitantes voltam a se reunir com os vivos para tragar expresso, cornetti e pizzas num dos muitos cafés amigáveis ao longo da estrada. Uma experiência de compras baratas pode ser vivida no enorme e colorido mercado de pulgas em Via Sannio, na Porta San Giovanni no caminho para Roma. Numa bancada no canto, suéteres de caxemira fina e jaquetas de lã são vendidas por 30. Roma tem muitos locais góticos, e para a minha viagem levei "O fauno de mármore", de Hawthorne. O escritor chegou ao fim de sua carreira como mestre do horror psicológico e supernatural na puritana Nova Inglaterra, e este diário de viagem novelístico não é o seu melhor. Um compêndio de dois volumes de alguns desses estranhos lugares, é uma sinuosa lenda de três artistas americanos trabalhando em Roma, que encontram e se tornam amigos de um sátiro de verdade, que parece ter sido o modelo de carne e osso para uma estátua de mármore no Capitólio. Visitantes atuais dos gloriosos tesouros guardados pelos Museus Capitolinos vão encontrar muitas estátuas do fauno, associado ao deus Dionísio, que representa o lado animal do Homem, simultaneamente inocente, sexual e sem lei. O parente mais ameaçador do fauno, o sátiro, é abertamente luciferiano, com chifres e patas de bode. Um grande sátiro nesses moldes lança olhares maliciosos de um armário no pátio egípcio do museu. Um passeio de ônibus ou uma vagarosa caminhada pelo centro histórico de Roma leva o viajante a outro importante cenário de "O fauno de mármore" — as assustadoramente lindas catacumbas dos capuchinhos, onde os personagens de Hawthorne confrontaram o monge do mal. Decoradas em estilo barroco com ossos de quatro mil monges mortos, a cripta dos capuchinhos, próximo à luxuosa Via Veneto, é hoje em dia uma parada popular em qualquer tour por Roma. Por mais macabro que pareça, é também um local sagrado. Câmeras, chapéus ou roupas sumárias não são permitidos. — Avise às americanas: sem essas camisetinhas de alcinha — disse Alba, recepcionista de plantão na tarde em que estive lá, enquanto repreendia um grupo de alemães que ignorava os sinais de desligar os celulares. — Escutem, as linhas de celular são muito fortes para as ossadas humanas daqui. Elas são realmente delicadas — exortou, em inglês. A cripta é apertada e claustrofóbica e o enjoativo e doce cheiro dos ossos enche um corredor pouco iluminado, percorrendo oito galerias gradeadas com arabescos contendo ossadas, organizadas por tipo — dedos, patelas, fêmures, articulações, crânios. No último cômodo, a mensagem no piso em cinco idiomas, perto das rosas espalhadas por fiéis, lembra os felizes turistas a beberem profundamente do copo das joias da Itália agora, à medida que a eterna sombra se aproxima: "O que você é agora, nós costumávamos ser. O que nós somos agora, você será". Subindo de volta às ruas de Roma, os prazeres italianos são imediatos e acessíveis, mas igualmente complexos. Sem a escuridão, o país pode ser insosso como a Suécia. Olhar a Itália pelas lentes góticas aprofunda nossa apreciação da dor, sofrimento e morte, que são, junto com o amor, fácil e luminoso, também muito humanos. A puxada infernal de Tânatos na Itália de Eros, a dança artística entre esses arquétipos opostos, é certamente um dos maiores encantos italianos. Bela praia e fantasmas de batalha Otranto é uma cidade histórica às margens do Mar Adriático, no "salto da bota italiana", a cinco horas de trem de Nápoles, e base para aquele que é considerado o primeiro romance gótico, "O castelo de Otranto", de Walpole. Visitei o lugar rapidamente numa tarde de verão. De volta, no final do outono, encontrei as antes agitadas ruas, agora tranquilas e silenciosas — nem tão convidativas, talvez, mas mais a ver com as insinuações de suas histórias macabras sobre as quais eu vinha lendo nos guias. Otranto, ouvi falar, é literalmente assombrada por um antigo acontecimento do mal: um massacre no século XV — um entre tantos da longa e sangrenta disputa entre islâmicos e cristãos — que os otranianos celebram anualmente. — A história local é cheia de sangue e escuridão — contou-me o guia e historiador Francesco Calignano, enquanto me conduzia pela catedral, conhecida por seu complexo piso em mosaico, que descreve cenas de mitos e lendas humanas conhecidos no mundo desde o ano 1100, aproximadamente, incluindo a árvore da vida da cabala, confucionismo e até o Gato de Botas. Depois de admirar o lindo piso, fui levada a um verdadeiro espetáculo gótico: prateleiras revestidas presas a uma parede do lado de fora, onde estavam 800 crânios humanos — vítimas dos invasores turcos. Sr. Calignano fez uma careta ao contar como pedaços preservados de carne das vítimas ainda eram guardados numa gaveta trancada. Uma vez por ano, em agosto, são removidos e exibidos pelas ruas. "O castelo de Otranto" foi um fenômeno editorial em 1764. O conto de Walpole descreve a punição sobrenatural de um príncipe feudal italiano usurpador num castelo assombrado, repleto do que hoje consideramos um estoque convencional de sustos — passagens secretas, túneis escuros, armaduras assombradas, retratos de antepassados saltando das telas. Na época, no entanto, essas imagens eram tão novas e chocantes que o livrinho de Walpole se tornou um best seller instantâneo na Inglaterra. Hoje é possível, por alguns euros, circular pelos corredores, buscando sinais dos fantasmas de Walpole, olhando dentro dos vazios cômodos gradeados, que poderiam ter sido masmorras. Mas a Otranto moderna é um lugar de prazeres sedutores, onde se pode passar tardes quentes banhando-se no mar azul e devorando frutos do mar acompanhados do rascante vinho local, Greco di Tufo. Sienna Miller andou tomando sol nas mesmas praias onde invasores turcos promoveram tempestades de areia agitando suas cimitarras no caminho até o castelo. -= Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/boa-viagem/tuneis-igrejas-catacumbas-revelam-lado-macabro-da-italia-3304260#ixzz2MtPslEZL © 1996 - 2013. Todos direitos reservados a Infoglobo Comunicação e Participações S.A. Este material não pode ser publicado, transmitido por broadcast, reescrito ou redistribuído sem autorização.

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